No primeiro artigo sobre Comunicação Não Violenta nós falamos de forma geral sobre o que ela é, suas origens, benefícios e seus pilares de autenticidade e empatia. Hoje iremos nos aprofundar no tema da autenticidade sob a ótica da CNV e começo te convidando a refletir:
É bem possível que você tenha relacionado ser autêntico com falar “a verdade” ou mesmo falar o que “penso”, pois esse tem sido nosso aprendizado cultural e não é raro ouvirmos: “ah, eu sou super sincero, eu falo mesmo tudo que penso, não fico maquiando, colocando filtros e sou totalmente transparente com todo mundo, pois não gosto de gente omissa e que se cala diante do que precisa ser dito”.
Agora eu te pergunto: “qual costuma ser a intenção por trás dessa vontade de falar a verdade e o que penso?”. Muitas vezes é mostrar para o outro a verdade, o que ele não está vendo e precisa ver para mudar e fazer melhor daqui para frente, não é mesmo?
Mas aí eu te pergunto: “você se abre e tem vontade de dialogar se recebe essa mensagem de que você está errado e precisa mudar ou você tem mais a tendência de se fechar e evitar essa conversa ou contra-argumentar para mostrar que a verdade é outra, que você tem razão e que o outro é que está errado?”
Neste cenário é bem provável que a conversa não flua bem e vire uma disputa para ver quem tem a verdade e assim vire monólogos simultâneos e não um real diálogo.
O convite da CNV para que a conversa flua de forma leve e respeitosa é que a intenção esteja em realmente construir um diálogo e partilhar com o outro a minha verdade e deixando espaço para escutar a verdade do outro. Então é um convite para uma mudança mais profunda, de intenção, e não somente de escolha de palavras, ou seja, não é tão simples assim e, ao mesmo tempo, há algumas práticas que podem nos ajudar a fazer esse caminho do que poderíamos chamar de “sincericídio” para a autenticidade.
De forma didática podemos dizer que a autenticidade tem 4 componentes fundamentais e interdependentes, que não precisam ser expressos numa ordem particular e nem com palavras específicas, mas, se bem trabalhados, podem nos ajudar a nos expressar de forma a gerar menos resistência no outro. São eles:
1. Falar os fatos/as observações concretas do que aconteceu (não misturar com interpretações ou inferências).
2. Contar, em primeira pessoa, meus sentimentos diante do ocorrido, assumindo responsabilidade por eles e sabendo que foram despertados por minhas expectativas ou necessidades.
3. Expressar minhas necessidades envolvidas na situação, o que eu esperava, o que era importante para mim e é importante para todos os seres humanos, por isso chamadas na CNV de necessidades humanas universais (ex. amor, aceitação, valorização, liberdade, eficiência, segurança, pertencimento, equilíbrio, dentre outras).
4. Fazer um pedido ou propor um combinado de como podemos lidar com a situação.
Colocado assim pode parecer simples ou mesmo uma técnica simplista, mas depois de tentarmos praticar vamos percebendo que é mais complexo e trabalhoso do que parecia e realmente demanda muita prática. Então vamos praticar?
Praticando com alguma situação incômoda
Sugiro que você pense numa pessoa que você considera difícil de lidar, mas com quem ainda pretende se relacionar. Escreva o que essa pessoa fez e/ou faz que te incomoda. Com isso em mente, como você poderia expressar esse seu incômodo a ela? (vale a pena você escrever para ver se até o fim da prática você percebe alguma diferença).
Agora escreva o fato/observação/gatilho/realidade compartilhada, ou seja, o que aconteceu realmente, sem nenhum julgamento misturado ou interpretação. E aí eu te pergunto: “é desafiador separar o fato do que eu acho dele, não é mesmo?” Parece pobre apenas descrever exatamente o ocorrido sem colorir com minhas avaliações, mas será que não traz muito mais clareza para o diálogo e pode ser um bom começo de conversa?
Então escreva o sentimento que você percebe ter nesta situação, com a intenção de nomear, acolher e me responsabilizar por ele. Neste ponto é importante ficar alerta para realmente se conectar com seus reais sentimentos, como tristeza, medo e frustração, ao invés de se desconectar do sentir e voltar para os julgamentos e usar pseudo-sentimentos, como rejeitado, desrespeitado, humilhado, etc. Percebe que estes últimos são, na verdade, interpretações e julgamentos de que o outro me rejeitou, desrespeitou e humilhou?
Você pode tentar perceber se consegue acessar o sentimento através de sensações corporais para ir conseguindo diminuir o teatro mental que fala do outro e se conectar com o seu sentir, em primeira pessoa, ex. eu me senti decepcionada quando pedi ajuda para aquele colega de trabalho e ele disse que não tinha tempo para me ajudar.
E agora chegamos na etapa de ganharmos consciência da necessidade envolvida na situação, ou seja, o que eu realmente queria, que senti falta ou perdi nessa situação. E usar alguma lista de necessidades humanas que circula na internet ou mesmo se encontra no livro clássico do Marshall Rosenberg pode ser útil até irmos ganhando familiaridade com essa linguagem e irmos percebendo que não são apenas palavras, mas aquilo que realmente é necessário para nosso bem-estar ou, no caso da falta, está por trás do nosso mal-estar.
Neste item também vale a pena pontuar a diferença entre necessidade e estratégia (ou desejo), pois, se não diferenciadas, pode gerar muita confusão e até descrédito a essa metodologia linda que o Marshall desenvolveu.
A necessidade é de ordem subjetiva e se refere aos valores humanos compartilhados por todo e qualquer humano no planeta, embora possam ter mais ou menos importância para cada pessoa a depender de sua cultura, contexto, biografia etc.
Ex.: uma pessoa pode valorizar mais aprendizado ou propósito num momento da vida em detrimento de segurança e até sair de um emprego estável para montar o próprio negócio e outra pessoa valorizar mais segurança em detrimento de aprendizado ou propósito e aceitar um emprego que não gosta nenhum pouco, mas ambas precisam das 3 necessidades citadas.
Já a estratégia é de ordem prática e se refere aos comportamentos ou desejos mais particularizados que servem para atender necessidades. Ex.: uma pessoa, para ter valorização/reconhecimento, pode sacrificar sua vida pessoal para ir crescendo na carreira até chegar a cargos mais altos e outra pessoa, para atender a mesma necessidade de valorização/reconhecimento, pode procurar um marido ou esposa que já tenha um status social elevado ou ainda, outra pessoa, pode seguir pela estratégia de fazer vários cursos e acumular muito conhecimento ou títulos acadêmicos etc. Ou seja, somos bem semelhantes na camada das necessidades, mas bem diferentes na camada das estratégias.
Neste último elemento o convite é para pensarmos na ação concreta que eu gostaria de pedir ao outro ou de propor como combinado para situações futuras. E aqui vale muito a pena se perguntar se eu consigo ir para o diálogo com abertura para cocriar a solução ou acordo com o outro ou se minha intenção é exigir que o outro mude.
Se for dialogar, de repente, já é hora de ir para a conversa, mas se ainda for exigir, pode ser útil refletir um pouco mais sobre os outros 3 elementos ou mesmo praticar a empatia. Mas esse é assunto do outro artigo.
Então vamos parar por aqui hoje com a seguinte pergunta: “após esse processo interno (e/ou com alguém te oferecendo escuta empática se você já tem praticantes de CNV por perto), como você poderia iniciar um diálogo com a pessoa com a intenção de compreender, ser compreendida e cocriar soluções criativas e sustentáveis?”.
Desejo bons diálogos a você e até o próximo artigo.